As palavras do médico Aurélio atingiram Marcos como uma metralhadora de projéteis de avisos. Era necessário ainda mais tato
e vigilância.
— Já faz 5 anos que te encaminho para
um urologista, Marcos, você deve ir verificar
se está tudo bem com sua saúde genital; sou o
médico de sua família desde que chegaram na
Saúde Plus e sei o quanto é incômodo tratar
deste assunto, mas hoje preciso ser mais direto
diante de sua recusa em ir ao especialista, pois
caso contrário, sua família corre risco. Sua esposa Ruth reclama de sua impotência sexual
faz algum tempo e preciso que você vá ao urologista avaliar se está tudo bem com sua próstata, você está com 58 anos e nunca realizou
uma avaliação, e hoje reclamou que tem tido
dificuldade em urinar, que é um sintoma para
o câncer, mas sem alarde, lembrando: isso é
para o bem de sua família, receio que ela possa
ser atingida, caso você permaneça inerte em
tentar resolver essa questão.
Marcos tinha plena noção de que há
oito anos o doutor o encaminhava para realizar o temido exame de toque retal e sempre
ignorou a solicitação por vaidade social, para
manter o figurão daquele tipo de homem que
jamais declararia em voz alta que permitiu alguém meter um dedo no seu cu, era homem
macho e como tal, precisava ostentar virilidade.
No entanto, agora era diferente. Pela
gravidade na entonação da fala de Aurélio,
Marcos, com sua perspicácia, sabia que seu casamento estava em xeque. E isso era mil vezes
mais perigoso que não deixar dúvida de sua
macheza. O casamento precisava ser mantido
a rigor para seu castelo não ruir.
Bendita hora em que concordara contratar um plano de saúde familiar! Graças a
isso se encontrava nessa situação! Passava
compulsoriamente com o doutor Aurélio, uma
vez que Ruth agendava as consultas e o obrigava a ir.
O inevitável pedido de sua esposa para
pagar por um plano de saúde chegou no determinado momento ao qual ela sabia que as economias iam bem e que o gasto não faria falta,
fortalecido pelo fato dela também ter entrado
na meia-idade e necessitar de exames, diagnósticos e acompanhamentos médicos mais
ágeis do que a oferta da longa fila do sistema
público.
Há anos seu negócio prosperava milagrosamente bem. Vinha conquistando a cada
semana um número surpreendente de clientes.
Ruth, como uma exímia mulher virtuosa, demonstrou a importância de resguardar a saúde da família em plena pandemia de um vírus
comunista lançado por países de mongoloides
que tentavam aplicar a ditadura comunista na
economia brasileira. Marcos não acreditava
em nenhuma das notícias que recebia via redes sociais. Tinha plena ciência de que eram
falsas, mas as disseminava fervorosamente,
afinal, elas eram um meio de perpetuar tudo
o que ele conquistara e uma forma de controlar seus clientes: tudo o que Marcos precisava fazer para mantê-los era os convencer de
que havia um inimigo, ainda que invisível, na
espreita, preparado para pô-los em um risco
também abstrato e inalcançável. Todo esse
processo parecia complicado, mas era muito
simples lançar uma informação enganosa com
uma frase de efeito emocional que incitasse o
ódio ao inimigo inexistente: precisamos unir
forças contra a onda esquerdista que tenta tomar o país e destruir nossas famílias!
E o primeiro passo para manter tudo
isso seria agendar a consulta com o urologista. Fato é que ali estava ele na sala de espera,
aguardando ser chamado pelo médico especialista. Fingia ler uma revista de saúde destinada
ao público geral com uma série de ensaios de
fotografias contrapostas de homens felizes em
ambientes claros representando aqueles que
cuidavam da própria saúde e homens muito
infelizes, em espaços escuros e expressões de
tormento.
— Marcos Luckyinian. — A voz grossa
do médico reverberou pela sala de espera.
O paciente estremeceu diante da aspereza do ruído que saíra da boca de quem o
chamara. Levantou e encaminhou-se para a
sala, cumprimentando Paulo, o urologista: homem alto, parrudo e barbudo, mas de postura
respeitável e com modos que muito acalmava,
contradizendo totalmente sua voz grave.
Depois de realizar uma série de perguntas e o tranquilizar que o processo não interferiria em sua sexualidade, Paulo solicitou
que Marcos se despisse em um canto reservado de costas para o médico e, na maca, se
deitasse de lado sobre a lateral esquerda de seu
corpo. Com uma ética profissional respeitável,
Paulo vestiu as luvas de látex e lambuzou seu
dedo indicador com lubrificante anestésico.
O momento havia chegado, seu cu seria rompido. Marcos segurou a respiração.
— Irei começar — falou Paulo, de forma neutra. Em seguida, introduziu cientificamente seu dedo no ânus do paciente e iniciou
o exame.
Marcos engoliu um gemido diante da
explosão que acontecia em seu ser. Sua mente
viajou na lembrança da última noite com Tifanny, mastro fálico imenso, preenchimento
de cu, tapa ardente na bunda durante a enrabada, arquejo e pedidos por mais, mais, mais,
continue, isso, cuspe, arregaço, suor, gozo,
porra, merda, mais, mais!
Paulo friccionava sua próstata com
agilidade e competência. O procedimento não
durou mais que vinte segundos e após finalizado, Marcos teve de voltar a si, pois Paulo dizia
para se limpar com um papel e voltar a se vestir.
O urologista já estava de costas para
ele. Marcos levantou-se rapidamente e vestiu a
cueca às pressas para esconder sua ereção latejante e babona.
Paulo o acalmou, disse que sua próstata e reto aparentavam estar bem, sem nódulos
nem nada que indicasse algum agravo, porém
era para ir realizar o exame de sangue e retornar com o resultado, para melhor avaliação.
Marcos agradeceu, meio sem jeito e
despediu-se.
Já começava a noite, quando, na rua,
voltando para casa, em uma viela deserta, um
ser — sim, aquilo não era humano, pois tentava ser o que jamais poderia se tornar, onde já
se viu, era um ser exageradamente maquiado,
absurdo —, o abordou e indagou se ele não desejava ter uma noite quente e gostosa.
O movimento foi repentino e certeiro.
A mão fechada de Marcos voou diretamente na fuça daquela coisa e a deixou atordoada pelo golpe súbito. Marcos empurrou-a no
chão, repugnado, e começou a chutá-la, chutar, chutar até ela quase perder a consciência.
— Isso é para você nunca mais sugerir algo desse tipo a um homem de Deus! —
rosnou Marcos. — E para aprender a ser homem, homem não pode ser mulher, homem
não pode virar Eva porque não engravida, não
procria assim, Deus fez Adão pra ser Adão!
Aberração!
Agachou e arrancou a peruca da cabeça daquele ser e a jogou longe.
Cuspiu no chão e voltou ao seu caminho, o fim da viela.
O episódio ainda quente na mente o
remeteu ao seu exame de toque retal de minutos atrás, que, por conseguinte, o remeteu
novamente à Tifanny. O espaço dentro da calça ficou apertado e o desejo foi tão intenso que
não conseguiu evitar: ligou para ela.
No quarto de motel, Tifanny cumpri-
mentou-o como sempre, de forma efusiva. Feliz, abraçou-o e seu perfume doce inundou as
narinas de Marcos.
— Sentiu saudades bem mais cedo,
amoreco! — ronronou ela, abrindo a camisa
dele e jogando-o na cama. — Esta é a segunda
vez só neste começo de semana.
Tifanny tirou sua própria blusa e os seios fartos caíram deslumbrantes.
Em segundos, Marcos, extasiado, libertou-se novamente das calças, cueca e sua
ereção pôde encontrar liberdade.
Tifanny pulou em cima dele, beijando
e acariciando-o.
— Vamos logo com isso! — implorou Marcos.
— Seu puto! O tesão é tanto a ponto de pular as preliminares, hem...
Tifanny tirou suas próprias calças e
seu membro pulou para fora, rijo. Sem perder
tempo, puxou as pernas de Marcos e este sentiu ser penetrado dolorosa e prazerosamente
por aquele mastro fálico imenso, preenchimento de cu, tapa ardente na bunda durante
a enrabada, arquejo e pedidos por mais, mais,
mais, continue, isso, cuspe, arregaço, suor,
gozo, porra, merda, mais, continua, mais gozo,
mais, mais! Naquele momento ele era a puta
de Tifanny.
Ao final dos prazeres orgásticos, banho
e despedidas, por fim, Marcos voltou para sua
casa e foi recebido por sua esposa Ruth com
um beijo amoroso de boas-vindas. O som de
pezinhos correndo ressoou pela casa e seu
filho pequeno apareceu. Sorrindo, pulou no
colo do pai, animadíssimo com as boas novas
para contar.
— Papai, papai! Olha, terminei de ler
a minha bíblia! — Brandiu o livro infantil e
ilustrado. — Estou cada vez mais perto de ser
como você, papai, um pastor de igreja!
Era um final de tarde de domingo na pequena Maltland. Tamara havia acabado de passar um café. Por mais que odiasse domingos, amava o silêncio e o pôr do sol. A cozinha ficava dourada pelos já fracos raios solares que invadiam o cômodo pela janela. O silêncio era quebrado pela água quente encharcando o pó e descendo abundante direto na garrafa. Café tem cheiro de memórias. Fazer café à tarde depois de um dia cansativo de trabalho mental e manual era quase que um momento de oração para Tamara. Tudo parecia encontrar seu devido lugar, e o mundo pausava em meio ao caos.
Quando tomou seu café, distraída olhando para a estrada a partir da janela da cozinha, Tamara levou a garrafa para a oficina e voltou a trabalhar no entalhe da madeira. Botou o disco The Marshall Tucker Band para tocar na vitrola. Pegou o serrote, os formões. Escolheu um bom pedaço de madeira, colocou os óculos de proteção. Quando ia dar partida na atividade, o telefone tocou. Era Karen.
- Tamara, eu sinto muito amiga, como você está?
- Sente muito sobre o quê? - Tamara soltou as ferramentas que tinha na mão e se sentou.
- Ah, você não soube?
- Não soube o quê, Karen?
- É sobre o James…
- O que tem ele?
- Olha, quer que eu vá até aí? É melhor dizer pessoalmente.
- Não, pode deixar. Eu vou até o bar e você me diz. Assim tenho algo para beber e com o que me distrair.
- Ok, te espero então.
Tamara pegou o capacete, subiu na motocicleta e foi em direção ao bar da amiga. Chegando lá, viu Karen sentada junto a Joe, ambos apreensivos e cochichando algo que parecia ser sério.
- E então. O que aconteceu?
- Tamara, sente-se. Vou buscar uma dose dupla pra você.
“O que aconteceu com James? Por que Joe parece estar tão arrasado?” - Tamara se perguntava.
- Tamara…
- Diga logo de uma vez. Vocês sabem que detesto conversa fiada, introduções. Direto ao ponto, por favor.
- Ok… James, ele…
- Morreu?
- Não, não exatamente…
- Então?
- James não existe.
Silêncio. A frase proferida pela amiga era tão absurda e sem sentido que a mente de Tamara virou uma explosão de luz branca. Sem reação, sem palavras. Só se ouvia o barulho dos copos de vidro batendo em mesas de madeira, tacos acertando bolas de bilhar e risos roucos ao longe.
- Como assim, “não existe”? Isso não faz sentido nenhum. Há sete anos trabalhamos juntos no jornal. Todo mundo aqui o conhece, vamos ver a corrida juntos aos domingos. Como assim ele não existe, Karen, que brincadeira idiota é essa?
- Acontece que… - a amiga tentou explicar.
- O nome dele não é James. Ele não é jornalista. Por todos esses anos ele mentiu sobre a própria identidade para a cidade inteira. - disse Joe, de uma vez.
- O quê? - a voz de Tamara saiu fraca feito cochicho.
- Não sabemos o porquê de ele ter feito isso, amiga. Mas o jornal foi fechado, as coisas dele não estão lá, nem a caminhonete. Diana foi quem descobriu e nos disse. O delegado tentou ir atrás dele, mas perdeu o rastro e voltou para investigar se foram deixadas pistas.
Tamara ficou calada por um tempo, enquanto ouvia o que diziam seus amigos, sem enxergar mais nada à sua frente. Sentia a cabeça latejar e os pensamentos voarem feito bala. Há poucos dias estiveram sentados ali, bebendo e considerando a amizade um do outro. Como pode uma pessoa não existir?
Ouviu tudo o que Joe e Karen tinham para dizer, enquanto bebia devagar o seu whiskey. A bebida descia quente na garganta e deixava uma nuvem perfumada no céu de sua boca. Sua bebida favorita, tão querida e tão falada que James tinha-lhe comprado uma garrafa em agradecimento pelos textos que ela produziu para o jornal. Ficou um pouco sozinha, alisando o copo vazio e observando as pessoas passarem. Aparentemente todos já sabiam, e cochichavam distantes dela. Alguns desviavam o olhar. Frank, o delegado, chegou com pressa para falar com Joe, mas quando viu Tamara ali sentada diminuiu o passo e tirou o chapéu da cabeça ao cumprimentá-la. Ela acenou a cabeça, séria, em resposta.
Tamara não chorou nenhuma vez. Não entendia ainda o que estava acontecendo. Precisava dizer em voz alta para poder acreditar que aquilo era real. Ligou para a amiga Bárbara pelo telefone público do posto de gasolina. Desabafou. Comprou cigarros na loja de conveniência e depois partiu em sua moto rumo ao jornal, de onde tinha a chave.
Entrou, acendeu as luzes. Não abriu nenhuma janela. Sentou em frente à máquina de escrever. Havia alguns rascunhos de brainstorm feitos por ela e James na última quarta-feira: ela o estava ajudando com um novo logotipo e reorganizando as colunas, mas nos últimos meses se dedicou mais à carpintaria e viajou por um tempo, então adiaram e não terminaram o projeto. Se deixou consumir por aquelas lembranças feito chama de vela. Eram tão recentes e vívidas, impossível que aquilo tudo não fosse real.
O jornal ficava na avenida principal, próximo à prefeitura e de frente para a igreja e a praça central. Muitos moradores passavam por ali o tempo todo. Tamara ouvia partes de suas conversas enquanto caminhavam em frente ao jornal. Ninguém parecia magoado, surpreso, indignado. Talvez por terem descoberto antes dela, ou pelo grau de intimidade que tinham com James, o tom era outro: de fofoca, de escárnio. Ou aquele que criança costuma usar quando conta uma história de terror que jura que aconteceu com ela, orgulhosa e tirando vantagem por ter vivido algo extraordinário. Como se aquilo fosse a mais banal das histórias. Pareciam felizes! Como podiam estar felizes e fazendo troça de uma mentira tão absurda que afetou a todos? Como podiam lidar tão levianamente com algo tão grave e traumatizante?
Nos últimos anos Tamara havia sofrido algumas perdas e seu então querido amigo James esteve com ela sempre que pôde e lhe disse palavras de conforto. Tamara sabia agora o sabor do luto. E esse mesmo gosto amargo que impregna a pele e os ossos era o que ela estava sentindo enquanto olhava fixamente para a máquina de escrever, recostada na cadeira do amigo.
James não morreu. James sequer havia nascido. Foi uma existência sem fim nem começo, uma coisa que flutua num intervalo de realidade. Tudo o que viveram juntos foi forjado e arquitetado por um estranho, que ninguém saberia de onde veio nem para onde foi. Ela aprendeu, ensinou, discutiu, brincou e trabalhou com um fantasma que nunca teve corpo, só vagou por aquela cidade. Uma ideia de gente, mas não uma pessoa. O amigo imaginário que nunca teve na infância. A materialização de um homem invisível. O escândalo para fazer rir a concorrência e para ser esquecido pelos bêbados. Bêbados que apostaram cartas, receberam conselhos, foram entrevistados por ele. James.
Como é estranho se lembrar do que nunca existiu! Como a mentira pode ser tão palpável? Tão aceitável, tão esquecível? Tamara sentiu uma indignação tão grande que passou dias vivendo no automático. Viveu tão automaticamente que até se esquecia de James, e se dava conta disso quando olhava para frente, no galpão atrás de sua casa onde praticava carpintaria, e via a garrafa de scotch single malt quase cheia, côr de âmbar, reluzindo com a luz da lamparina. Ela abriu pela primeira vez aquela bela garrafa, que mais parecia um vidro de poção mágica, quando o líder revolucionário foi solto da prisão estadual. Bebia aquele líquido desde o primeiro gole honrando a amizade de James e os princípios políticos que compartilhavam. Aquele líquido mágico tinha sabor de esperança e de utopia.
Tamara não sentia um pingo de raiva dele. Sim, abominava mentiras, que as deixavam sempre fervendo de ódio. Mas estava sentindo algo muito pior, mais triste: decepção. A decepção fazia Tamara se calar. E o silêncio era a pior postura e a pior e mais grave versão da carpinteira. Era o mais profundo do poço de si mesma. Estava decepcionada por ter se desiludido mais uma vez. Decepcionada porque não só não haveriam memórias futuras, mas as passadas foram construídas em cima duma base insustentável, impossível. Decepcionada porque aquele rosto, tão bem marcado em sua mente, era uma máscara, uma ilusão.
Ligou para a irmã, que morava no litoral. Tentou explicar o absurdo vivido, pensaram juntas possíveis motivações: era da polícia? Estava fugindo da lei? Era um stalker, um tarado, psicopata? Um solitário cansado de viver no porão da casa dos pais? Um aventureiro? O quê? Não importava.
- O “James”, esse… cara…
- Tamara, acho que não há problema em você chamá-lo de James. Mesmo que não seja o real nome dele, foi por esse nome que o conheceu… - disse a terapeuta, certa vez.
- Pois é… Não sei se faz sentido isso. Eu pensei, evitei pensar. Pensei por outra perspectiva. Mas sempre volto àquela sensação de luto. Mentiroso ou não, tivemos momentos de realidade no meio dessa mentira. Compartilhamos ideias. Escrevemos juntos. Colaboramos um com o trabalho do outro. Isso foi real. Dentro de uma mentira insana, a realidade existiu. Assim como plantas teimam em nascer em frestas de concreto.
Era isso. Todos poderiam rir e se esquecer, e agir como quisessem sobre essa estranheza. Tamara teria sua própria interpretação do caso. Ninguém ensinava nos filmes como lidar com os destroços causados pelos crimes de falsa identidade; o personagem, fosse ele policial, psicopata ou fugitivo, tinha seu desfecho a despeitos das personagens coadjuvantes. Se fosse filme policial, ele ainda tinha a desculpa do ofício da lei e o trabalho de investigação em disfarce, o que facilitava o perdão da mocinha. Mas a realidade era muito distante disso. Tamara não era do tipo que perdoava. E nesse caso nem tinha a quem perdoar. Inverteu a lógica e se decidiu por tratar como real aquilo que viveu com James. “James existiu pra mim”, pensou. “E o homem que ele é de verdade nunca se apresentou para mim, então é esse que não existe”.
Então, o homem que atuou como James não era ninguém senão aquele que deu corpo a seu amigo. Um receptáculo. James viveria, portanto; porque existia em sua memória e na linha do tempo de sua vida. James estaria vivo e presente em cada corrida, em cada jogo do time favorito, em cada tipo da máquina de impressão de jornais, no logotipo que ele criou e ela talhou na madeira. Nos conselhos dados em noites de coração partido. Nas indicações de filmes de terror. No amor por Jack Nicholson. Engraçado. A última coisa que Tamara se lembrava de ter dito a James foi que, quando Jack sorria, era James quem ela via. Que Nicholson James era? O Coringa, um trickster? Jack Torrance, o violento marido tão fantasma quanto aquele hotel, barman e copo de whiskey? McMurphy, o estranho no ninho, que apareceu do nada numa roda de desesperados e que deu vida àquele lugar, com aquele trágico final (e a risada mais gostosa)? George Hanson, o easy rider, que falava de liberdade e fazia graça viajando de moto pelas estradas americanas? Estava mais para David Locke, o passageiro de Professione Reporter, o jornalista que, no filme de Antonioni, troca de identidade com um morto para viver uma nova vida, do zero. E assim, trágico como começa, termina.
Pensando nas tantas semelhanças entre - o personagem - James e os personagens de Nicholson, Tamara riu. Sabia o que fazer. Brindando à honra desse amigo-personagem - e não seu criador, corpo-recipiente que o abrigou e ator que o representou por tantos anos -, pegou um copo, a garrafa de whiskey e apoiou do lado direito da máquina de datilografia que furtou do escritório do jornal. Um souvenir. Sentou-se em frente à máquina em sua oficina e começou a gravar aquela estranha - mas sua - história no papel. Enquanto houvesse aquela garrafa de whiskey e palavras marcadas, proferidas, desenhadas, existiria James. Enquanto houvesse Jack Nicholson, aquele estranho, iluminado, passageiro sem destino ainda faria parte de sua história e, portanto, de sua vida.
Leitor, essa não é uma estória feliz. Se escrevo é porque não posso estar com ela.
Ela, o leitor descobrirá quem é, nos próximos parágrafos. As letras de seu nome aparecerá uma a uma no início de cada um, a começar pelo próximo. O leitor ou leitora pode pular e saber seu nome, ou ir descobrindo aos poucos, enquanto escrevo, o que particularmente eu sugiro.
A garota da qual vos falo, o nome cujo vocês só saberão próximo do final, parecia um anjo, mesmo que o narrador nunca tenha visto um, e por falta de um, vi a ela. Tudo era lindo naquele ser, se tivesse asas deveriam se da espessura de um floco de neve, mesmo que eu também nunca tenha visto, pois se o leitor bem sabe essa estória é contada na língua do colonizador e caso você esteja lendo isso em outra língua, bom, aqui não faz tanto frio a ponto de nevar, pelo menos não de onde escrevo. Bom, imaginemos, imaginemos. Tudo nela parecia estar no lugar certo, os dedos do pé faziam um arco perfeito; a pele não tinha depressões nem protuberâncias; os cabelos não se emaranhavam e além de tudo, possuia uma voz… A voz, essa sim, era o que havia de mais perfeito nela. Os olhos quase poderiam disputar, mas o que saia de sua boca era divino. Essa foi a última criação de Deus: a voz de A…
Leitor, você sabe que é difícil manter um imaginário assim por muito tempo. Busque em sua memória e veja se não estou certo. Mas com ela era diferente, a imaginação era facilmente superada pela realidade, às vezes não conseguia imaginar algo tão perfeito e, quando o fazia, era a imagem dela que vinha a mente. Bem, além da voz, Deus parecia ter lhe dado o presente de não envelhecer. O tempo, falaremos mais sobre ele depois, parecia passar devagar para ela; as células do corpo se esqueciam de morrer e o sol não a machucava, ao contrário, chegava a acariciá-la; eu percebia isso quando ela ficava em frente a janela… Vocês não acreditariam se eu dissesse que era ela parecia um anjo.
Imaginemos agora o temperamento. Ela era quieta. Era o tipo de pessoa difícil de roubar a paciência. Eu sempre achava fantástico como ela era decidida em fazer certas coisas e quando isso acontecia, o espaço entre as sobrancelhas ficavam comprimidas, como se estivesse brava; pelo contrário, estava tranquila e concentrada. Era ela que trocava o chuveiro, pintava a casa; eu, até medo de ligar o fogão tinha. Um dia numa viagem de carro, a estrada havia parado, ficamos cinco horas no mesmo lugar, ela simplesmente pegara um livro, colora os fones e só se dava por incomodada quando a fome chegava; pegou um pacote de bolacha, comeu e dormiu. Eu ia de um lado para o outro, conversando com motoristas...cinco horas de agonia e sol. E o anjo dormia no carro.
Tempo. Aqui, leitor, as coisas começam a ficar tristes. O tempo para mim parecia passar que nem flecha num campo de batalha, os anos pareciam segundos e a flecha parecia se perpetuar no tempo. Ela e eu. Mas diferente de mim, para ela, o tempo andava a passos de tartaruga, cada segundo para ela parecia anos. Isso explica porque no começo ela era muito mais eufórica. No fim do primeiro ano de namoro ela já se preocupava em morarmos juntos. Nos mudamos no fim do segundo. No fim do terceiro a casa já estava do jeito que ela queria, eu aplaudia como um espectadora tudo que ela decidia: um quadro na parede, um cortina translúcida, um vasinho de plana...No fim do quinto, depois de um ano de escovas juntas, nos casamos. Leitor, não sei se isso já lhe aconteceu, esperar sua amada chegar no altar...tudo parecia paralisar por um momento. Ah! que dádiva; o leitor, ou leitora, deve experienciar esse momento pelo menos uma vez na vida, é claro, se acharem a pessoa certa. Depois de um tempo começamos a pensar em filhos, ela disse que queria ter filhos comigo e aí percebi que esse seria o nosso selo de união eterna.
Aconteceu que eu era estéril. Percebi que ela murchara como uma fruta que passa tempo demais na fruteira, esquecida; mas era eu quem estava estragado. Bom, acho que o leitor já descobriu o nome dela e me desobrigo de só usar os pronomes. Depois do oitavo ano juntos, Alita parecia pálida. Perdera a alegria, ou só guardara por algum tempo. Ela tentou ficar alegre. Pensamos em adotar uma criança, conhecemos algumas, mas quando chegávamos em casa Alita se trancava e ficava calada. Mas sua tristeza se limitava a isso. Ainda erámos um casal, fazíamos coisas de casal, mas era a família que nos faltava. Quase podíamos ver as crianças correndo e se jogando no tapete da casa; a banheira poderia estar cheia de alegria infantil, mas nos restava as flores murchas. Era difícil ver um anjo afogado em tristeza. As asas derreteram, estava em sombras.
Ouvi Alita dizer, com aquela voz divina, um apertado “adeus”, quatro anos depois da notícia da minha condição. Doía nela e exponencialmente em mim. Ela sentia o tempo como eu não podia; via o futuro junto com alguém que ela não poderia chamar de ‘pai dos meus filhos’. Alita foi embora. Não a impedi. Anjos vem, e vão sem pedir.
Anos depois a encontrei. Um filho em cada mão.Os garotos eram loiros, dois anjos pequenos. Fechei os olhos e tentei imaginar o sol encostando nela anos antes em frente aquela janela.
Posso vê-la ainda, claramente, mesmo trinta e cinco anos depois.